Dialeto. A região de Patrocínio teve um que marcou uma raça, um tempo. Diversos patrocinenses conhecem a Kalunga, que é a língua secreta dos escravos. O pesquisador patrocinense da gema, Marlenísio Ferreira, é o destaque. É o autor de excelente livro sobre a Kalunga, fruto de sua intensa pesquisa. Faleceu em 2011, na cidade. Outros patrocinenses participaram também desse movimento de revelação de uma dominante língua no (grande) município de Patrocínio. Época que várias cidades de hoje faziam parte da terra patrocinense. Gente como o intelectual Gerson de Oliveira, Cecílio de Souza, Cabrera (pai da Denga), Maria Rita Pereira (Dona Liquinha), Sebastião Elói e tantos célebres de gerações, que não deixaram a famosa língua da raça negra cair no esquecimento. Alguns exemplos de palavras e significados escritos pelo Marlenísio merecem ser citados. Como também quem foi Rita Rodrigues.
ESCRAVIDÃO NEGRA EM PATROCÍNIO – O primeiro censo registrou 7.177 escravos no Município, em 1872. Incluindo os, então, distritos São Sebastião da Serra do Salitre e Coromandel. O território patrocinense era um dos maiores redutos escravos da Província (Estado). A “freguesia” (sede) de Patrocínio tinha 1.699 escravos, mas o seu distrito (Serra do Salitre) possuía 3.830 escravos. Ou seja, em torno de 25% da população total eram escravos. Patrocínio liderava a escravidão na região. O número de negros era significativo. E por isso houve um “apartheid” (separação racial) na cidade, que durou do Império Brasileiro aos anos 30. Até a Igreja Católica demonstrava o “apartheid”. No Largo do Rosário (Praça Honorato Borges), havia duas igrejas próximas. A igreja de Santa Rita destinada às pessoas livres (predominantemente, raça branca). E a igreja do Rosário (próximo onde é hoje o Instituto Bíblico) reservada para a raça negra, principalmente os escravos. Nossa Senhora do Rosário era a padroeira dos escravos. Nessa injusta e polêmica sociedade despontou a Kalunga, a comunicação secreta dos escravos.
MUNICÍPIO RURAL, “APARTHEID” MAIOR – Como frisou Marlenísio em seu livro, nas residências os “senhores” entravam pela frente e os “escravos” pelo fundo das casas. Na casa (maior), a raça negra tinha permissão para entrar na cozinha só para cozinhar e “arrumar” a cozinha. Lavagem de roupa, quarto, banheiro (privada), horário e qualidade de alimentação, enfim, tudo separado, tudo diferente. Isso tanto na cidade como na fazenda. Aliás, nas fazendas a segregação era mais acentuada. Nisso, surgiram os termos “senzala” e “casa grande”.
RAZÃO DA FEIJOADA E DA “MANGA COM LEITE” – Como a qualidade da alimentação dos escravos era muito inferior a dos “senhores” e família, os restos de carne de porco eram para os escravos (praticamente, toda fazenda ou casa maior na cidade tinham “chiqueiro”). Como também o feijão com mais grânulos (exemplo, o “feijão preto”). Assim, os escravos misturavam os dois alimentos em uma panela grande, adicionando couve e cebolinha, cuja as plantações era de livre acesso. Daí, nasceu a feijoada. Por outro lado, o leite era caro e de menor quantidade. A manga, saboreada e preferida pelos escravos, era farta e quase de nenhum valor. Como os “senhores de engenho” (fazendeiros em geral) precisavam arrecadar dinheiro com o leite e o queijo, objetivando reduzir bem o consumo de leite pelos escravos, criaram a versão mentirosa (“mito”) de que tomar leite e chupar/comer manga, no mesmo tempo, poderia causar a morte de quem o fizesse.
PROFISSÕES VERGONHOSAS... – Até as décadas de 60 e 70, “rachar e carregar a lenha” era tarefa para gente da cor negra. Costume do tempo da escravidão. Por exemplo, “Sô Vicentão” (residente no então bairro Sertãozinho) era o melhor da cidade para lidar com a lenha (para residências e padarias). Na conceituação de Marlenísio Ferreira, “lavar e passar roupa” também era “vergonhoso” para as pessoas livres fazerem. Ainda como resquício do tempo da escravidão, nos anos 50 e 60, as duas principais “lavadeiras” (e “passadeiras”) da cidade eram negras e tinham o mesmo apelido: “Negrinha”. Uma residia na região onde é hoje o falso Mercado Municipal (Jandira Maria de Jesus, sobrinha de Dona Liquinha) e a outra na região da Santa Casa (essa mãe do falecido folclórico El Sorriso, chamada de Negrinha do Delino). Ambas atendiam também à classe alta da cidade (médicos, fazendeiros, empresários).
DIALETO OU CÓDIGO DE SOBREVIVÊNCIA – Seja um ou outro ou ambos, é cultura conhecer alguma coisa da Kalunga. Do livro citado, de Marlenísio, dizer “amparo de aprumar kuriá na mucota de kamano” significa “apoio de colocar comida na boca de homem”, resumindo: garfo ou colher. Mais uma: “Fatiza de magonheiro é mumonha”, ou seja, “Doença de malandro é preguiça”.
POLÍCIA, PADRE, SURUBA... – “Gatuvira aprumado é gatuvira ofu”, que é “café bom é café preto”. Sobre a polícia, um dos exemplos citado por Marlenísio na kalunga é “Nanga do gonga é índaro” (Roupa da polícia é amarela). E palavras enganam: “Suruba ôa de Kuriá não é suruba”; traduzindo do kalunga para o português: “Festança sem comida não é festança”. E tem mais, ''Gurió sucana kimbunde no injó santo", traduzindo "Padre casa pessoas na igreja".
ALGUMAS PALAVRAS NA KALUNGA/PORTUGUÊS – Tatá (pai). Dandará (menino). Tunda (surra). Umbera (chuva). Uísque (açúcar). Kupia (cabeça). Mucotar (beijar). Quizumba (bagunça). Bufunfa (dinheiro). Kalunga (conversa). Inglaterra (chão). Korombo (chefe). Ariranha (cigarro). Marangolo (cavalo). Kozecar (dormir). Konema (fezes). Okay tatá (mãe). Sungá (levantar). Cufar (matar). Pisante (pé). Mirante (olho). Buzú (ônibus). Mukafo (velho). Banzo (sexo). Omenha (água). Bacuri (caixa).
E CONTINUAM USADAS... – Diversas palavras da kalunga ainda são faladas/escritas por brancos ou negros. Tais como bufunfa (dinheiro), pisante (pé), tunda (surra), buzú (ônibus), quizumba (farra), etc.
UMA ORIGEM EXATA DA KALUNGA EM PATROCÍNIO – Maria Rita Pereira, a Dona Liquinha, nascida em 10/5/1900 (faleceu em 25/12/1999), naquela época sempre moradora da Rua Marechal Floriano, próximo ao Colégio Prof. Olímpio dos Santos, forte líder da raça negra, tornou-se a “professora” da kalunga para diversas pessoas, sobretudo negras, tal como o seu filho adotivo Cabrera e o Gercílio (Cilim da Banda). Casada com um trabalhador que participou da construção da ferrovia (1915/1918), era filha de Rita Rodrigues, uma ex-escrava patrocinense. Rita nasceu no ano da emancipação de Patrocínio (1842) e faleceu em 1958, aos 116 anos de idade. Residia, com a filha Liquinha, onde é hoje o cruzamento de Rua Arthur Botelho com Rua Marechal Floriano. Por ter sido escrava, por mais de 40 anos, dominava a língua kalunga.
Crônica também publicada na Gazeta de Patrocínio, edição 15/06/2024.