Inigualável. Dois momentos na história rangeliana tornaram-se os maiores espetáculos de violência. A atualidade não os aceitaria. Nem os permitiria. Pois, haveria e há meios adequados de controlá-los. A invasão de campo, com pancadaria, em um clássico jogo regional e a invasão do, então, melhor cinema do interior, com depredações. Esses são os dois eventos. Isso há quase 60 anos atrás.
QUE JOGO! – No dia 11 de agosto de 1963, domingo, CAP e Araguari Atlético Clube se enfrentaram mais uma vez no Estádio Júlio Aguiar. Desta vez, foi jogo amistoso. Amistoso de acordo com as normas de futebol, amistoso de acordo com o adequado e necessário relacionamento humano. Mas... não foi bem assim.
COMO ERA O CAP – O Atlético Patrocinense (a imprensa da capital sempre dizia o Patrocinense) era o grande representante de Patrocínio no campeonato mineiro da Primeira Divisão (naquele tempo, a divisão principal era chamada de Divisão Extra). Peroba, Macalé, Romeuzinho, Gato, Dedão, Barofo, Gulinha e Edward, vindo do Mamoré, juntamente com o ponta esquerda Anedino, posteriormente foi transferido para o América de Belo Horizonte. O quarto zagueiro Jovelino, de Patos de Minas, tinha sido reserva do bicampeão mundial Orlando, no Vasco da Gama. O Patrocinense era um time de toque de bola.
NAQUELE ANO... – O campeonato mineiro da Segundona pegava fogo. Patrocinense, Araguari e Nacional (de Uberaba) eram as melhores equipes. Naquele dia (11/8/1963), às 15 horas, chovia copiosamente sobre a cidade. Mesmo assim, inúmeros torcedores (com guarda-chuva) se dirigiram ao novo estádio pela Av. Faria Pereira.
PONTUALMENTE... – Eram 15:30 horas. São Pedro desejou participar da festa. Fechou a torneira e o sol voltou a brilhar. A torcida aumentou. O estádio lotou. A Rádio Difusora, ZYW-8, esteve transmitindo do estádio com a voz forte de Sérgio Aníbal. E o jogo começou.
BOLA ROLANDO... – Bola lá, bola cá, como nos clássicos dos velhos tempos. O zagueiro central Luiz Silva, do Araguari, começou a entrar “duro” nas jogadas. E provocar a torcida, que já tomava conta de toda a arquibancada (Luiz Silva era um mulato bom de bola, mas segundo a torcida da época, “metido” e “chato”).
INCRÍVEL CENA – O disputadíssimo jogo estava em seu segundo tempo. Luiz Silva fazia mais uma ação inconsequente. A torcida perdeu a paciência e começou a saltar o alambrado. Os jogadores do Araguari foram ameaçados, mas quem levou a pior foi Luiz Silva apenas. A Polícia Militar tentou proteger o juiz e os araguarinos. Tiros, acredite, tiros foram dados para o ar. Felizmente ninguém foi ferido gravemente.
OS INVASORES – No gramado do Júlio Aguiar, todas as classes sociais da cidade (havia personalidades) se misturaram e se transformaram em uma classe somente. A classe de torcedores apaixonados. O jogo não terminou. O placar assinalava 2 para o Patrocinense, 1 para o Araguari. Depois, houve troco na cidade Sorriso.
AGORA, PRAÇA SANTA LUZIA – Anos 1959/1960. Também numa bela noite de domingo. A maior diversão da cidade era o cinema. O luxuoso Cineteatro Patrocínio, que substituiu o Cine Rosário, era a sala de visita da cidade. A televisão não era conhecida. Somente poucos patrocinenses que, por algum motivo, visitavam Belo Horizonte sabiam que mistério era esse chamado de televisão.
OUTRAS ATRAÇÕES – A Rádio Difusora, então ZYW-8, com seus programas de auditório (a voz de Petrônio de Ávila era o maior destaque), o Itamarati Clube, o desconfortável Estádio do Ipiranga (próximo à Igreja São Francisco) e o vaivém na Praça Honorato Borges completavam o quadro de lazer da saudável gente rangeliana.
MELHOR REFERÊNCIA – A praça Santa Luzia era o ponto nobre de encontro. Assistir a um bom filme aos sábados e domingos era quase obrigação social. De 19h às 21h acontecia o vaivém. Um organizado desfile de moças e moda, protegido por um verdadeiro anel de rapazes, que estáticos, deslumbravam a beleza da jovem mulher patrocinense. O primeiro flerte, o amor platônico (sem o contato físico), o primeiro sorriso e o primeiro passo passavam certamente por essa parada da felicidade. O vaivém.
E MAIS... – Os grandes filmes eram exibidos aos domingos. E quem quisesse um bom lugar numa das duas sessões tinha que chegar mais cedo. A movimentação de pessoas começava muito cedo. E era muito grande. Neste cenário, em um domingo, foi escrito uma incrível página na história de Patrocínio.
A CAUSA DO TUMULTO – Os proprietários (família Elias) do cinema aumentaram o preço do ingresso. Um aumento de rotina. Movida não se sabe por quem, para que ou porquê, a multidão iniciou o boicote. Aconteceu a “fila boba” (fazia-se a fila para a compra do ingresso, apenas perguntava-se quanto custava à bilheteira e voltava-se para a fila). As vaias ensurdeciam o centro da cidade. Um dos líderes desse movimento foi o folclórico Romeuzão, um cidadão de bonita aparência que gostava de estar vestido com terno, parente do saudoso radialista Roberto Taylor. Aí a polícia chegou, porém o número de policiais foi insuficiente para impedir o vendaval, e abrigar o cinema da tempestade da ira dos desordeiros.
A OCORRÊNCIA – Pedras começaram a ser atiradas. As correntes de proteção da entrada começaram a ceder. Na plateia, os poucos espectadores que conseguiram entrar (entre os quais, um menino estudante do emblemático Ginásio Dom Lustosa, este escriba), viam na tela o drama da família Karamazov. De repente, foram convocados para saírem pelas portas do fundo. A multidão invadiu o cinema. Vidros foram quebrados, cortinas rasgadas, poltronas inutilizadas e instalações danificadas. Foi o resultado do ciclone humano. As máquinas foram poupadas.
DIA SEGUINTE – Na segunda-feira, os danos foram expostos na praça. O inquérito foi iniciado. As rádios e os jornais de Belo Horizonte (estes na terça-feira) colocaram Patrocínio em seus noticiários policiais. Estava escrita a página que não deveria ter sido escrita. Pois, foi escrita vergonhosamente.
Primeira Coluna publicada na Gazeta, edição de 18/5/2019.