# Milton Magalhães

Resposta à Carta "Patrocínio dos Meus Tempos"

20 de Outubro de 2019 às 07:50

(Foto: Luiz Flávio Mariano)

 

 

PREZADO GENTIL MURSE

Primeiramente, devo-me confessar constrangida, como pude deixar isto acontecer ?... Mais de 50 anos e somente agora, “pego na pena” para lhe escrever. Não quero que pense que isto se deu por descaso meu, mil vezes,  não! Acredite, sei de cor palavra por palavra do que me escreveu. Na verdade passei  todos estes anos, esperando que voce voltasse a viver aqui comigo.

Não vai aqui nenhuma desculpa de minha parte, mas, imagine, hoje, pesa-me sob os ombros a tarefa de cuidar, indistintamente, de  quase cem mil filhos. Sendo o meu nome "Patrocínio", cujo significado é, proteção, ajuda, apoio, tenho que viver á altura desta missão de cidade cuidadora.

Nem preciso dizer que, quando vejo um caminhão de mudança, dobrar a curva da Br 365, me ponho a pensar cheia de culpas: "lá se vai mais uma família saindo  do meu seio" Onde foi que errei? No fundo, tenho todas as resposta e daria tudo para que a realidade fosse outra.

No seu caso, esperei que voltasse. Imaginei que onde estivesse, voce ouvisse  a canção do pai da Bossa-Nova e se inspirasse no mesmo tom: "Eu vim da Bahia,(de Patrocíno) mas algum dia eu volto pra lá" Fiquei de braços abertos na espera.

Pessoas são insubstituíveis; filhos são únicos. Quem parte não imagina a falta que faz aos que ficam. No filme - creio de seu tempo - "A Felicidade não se compra", um anjo, por nome Clarence, desce do céu para dissuadir George Bailey de um suicídio. A máxima do enviado celeste, nos diz muito: "A vida de uma pessoa afeta tanto outras vidas, que quando ela deixa de existir, fica um buraco horrendo". Quando voce partiu, não tive a sorte de contar com a ajuda de um ser angelical para virar a sua cabeça. Voce se foi, outros se foram, fiquei com o tal "buraco horrendo".

Gentil Murse. Gentil. Realmente voce não poderia ter outro nome. A forma com que visitou o nosso passado comum, nesta despretenciosa epístola, fala de uma pessoa, generosa, afetiva e agradecida.

Não é uma simples  carta, para mim, é um relicário dourado, onde voce entesoura, pessoas, fatos e lembranças com riqueza de detalhes. Voce guardou, coisas das quais já nem me lembrava mais.

Um dos pontos tocantes, foi, voce me dizer com toda expressividade, que me amava na pobreza: "Até a sua poeira era gostosa". Juro, jamais recebi outra prova de amor mais carregada de verdade e ternura.

Insisto em dizer: Voce precisava ter voltado.Por que, Não? As suas gratas memórias, salpicadas de queixas chegaram a mim e de minha parte, acabou ficando este silêncio como resposta. Quanta coisa para ser compartilhada - pessoalmente! E voce sempre tão  inteligente e compeensivo, não apenas me entenderia, mas, creio, centuplicaria o seu amor por mim.

Entendo este seu viés romântico e saudosista. Entendo o seu rosário de desabafo e frustações com as mudanças que ocorreram. Voce achava que eu deveria ter lutado contra o progresso, mas, convenhamos, seria o mesmo que  quixotear contra os moinhos de ventos.

Voce sabe o quanto a vida é dinâmica. Heráclito dizia que“ Um homem não pode entrar no mesmo rio duas vezes".Uma cidade jamais poderá também paralizar a sua marcha. Embora convivendo com dois extremos. De um lado o risco do progresso ufanista e demolidor de valores; do outro, o risco de se estacionar e perder a  real função de cidade acolhedora. Desenvolvimento harmonioso, seria a  palavra de ordem. E aqui digo que voce precisava muito ter conhecido tres ilustres filhos:Sebastião Eloi os Santos, Pedro Alves o Nascimento (estes infelizmente, chamados á eternidade) e Eustáquio Amaral - "Menestrel Rangeliano" (Este, felizmente, em épica luta atual). Eles conciliam o passado, presente e futuro, com o critério e a arte de um relojoeiro suíço.

No bucólico tempo descrito pela sua carta, não estava em voga, tantos novos conceitos. Não se falava, entre outros, em, Estatuto da Cidade, Plano Diretor, Desenvolvimeno Sustentável, Mobilidade Urbana, Coleta Seletiva, Inclusão Social. Alguns, aí, são ditames constitucionais, que outras cidades como eu, piamos fino para cumpri-los.

Meus filhos  são estemunhas de minha luta titânica, ainda assim, contabilizo déficits, na educação, saúde, emprego, segurança, cultura, turismo, lazer, meio ambiente e desenvolvimento rural . Embora, aqui e alí, pinga algumas conquistas, que peço vênia para celebrar.   Refiro da  atualização do Plano Diretor; construção da nova Sede do Batalhão; implantação da Zona Azul; reforma do aeroporto local; construção de diversas Estações de Tratamento de Esgoto; (oxalá) construção do novo Pronto Socorro e o surgimento de vários bairros.

Há! Valha me Deus! Que petulância esta minha. Eu de cá com este consummé de letras, dirigido logo para quem?Dirigido logo para voce que me disse: "O progresso metamorfoseia em cidade graciosas, as que eram feias" .Logo para voce que confessou que aos seus olhos, no maior perrengue, eu sempre fui bonita: "E muito bonita!"

Como voce soube tocar as cordas do meu coração, nesta carta, seu 'filho da mãe'!

Posso ouvir os suspiros que brotaram de  sua alma enquanto recordava: A boiada que atravessava a cidade; o chiado dos carros de bois; o alarido das pupilas do Colégio Nossa Senhora do Patrocínio; seu filho Décio brincando no carnaval; circo de cavalinhos na Praça Santa Luzia; os jogos no campo de terra do Ipiranga; Comícos dos partidos PSD, UDN e PTB; a oratória de Carlos Pieruccetti; as honestas orgias depois os bailes do Itamarati;  o Alonso Alves, que criava lobo no terreiro de sua casa e tinha um legítimo Stradivarius que nunca tocava; a loja do sr.Secundino de Faria Tavares, onde tinha de tudo; as gabirobas e cajuzinhos; os tipos populares, Rita Bonita e o Tota...

Daí voce me vem com essa, dizendo, que não voltou, para não manchar com as sua lágrimas "meu vestido novo e meu sapatinho preto cor de asfalto" Aqui, voce pecisava era de umas boas chineladas...Onde já se viu? Sabia, que lágrimas de saudades, não mancham! O que mancham são os olhos secos da indiferente ausência. Quanto ao uso do"vestido novo" e do "sapatinho preto cor de asfalto", pergunte a uma mãe, ou a um pai, por que se ornamentam com o melhor traje, enquanto esperam os filhos. Ainda que, tem filho que, infelizmente, não encontra o caminho da volta; tem filho que regressa sempre para o longo abraço; e o seu caso. Envia uma carta, assim, tão gentil. Pra mim, um tratado da saudade, que será sempre deliciado como  uma fornada de pão de queijo ao luar...