# Milton Magalhães

Setembre-se..Quintanea-se...

4 de Setembro de 2021 às 19:16

( É sobre livros, flores, amizade e talvez, amor)

Ele perdeu a conta de quantas vezes mudou de endereço ao longo de sua vida.

De um bairro a outro na cidade; depois, de uma cidade a outra e chegou a morar em dois estados diferentes. Mas, agora, quinze anos depois estava de volta à sua cidade natal...

Em toda mudança, convivia com um problema.Tinha que praticar o desapego. Algum móvel era deixado pra trás. Um jogo de sofá ainda em bom estado de conservação; um rack que não formava conjunto com a decoração. Até um guarda roupa, que um vizinho se interessou, ficou lá com ele.

Porém, tinha uma coisa que Manuel, ( o nome dele era esse) nunca deixava pra trás: Os livros.

Eles iam juntos, embora ocupasse cada vez mais espaço na mudança.

Não era um bibliófilo, nada que lembrasse um José Mindlin, por exemplo. Era um ajuntador de livro e mediano.

Contudo se você procurasse com ele, alguma obra de Machado de Assis, José de alencar, Guimarães Rosa, alguns best seller da literatura mundial, e até algum exemplar de esperanto podia ser encontrado em seu caos literário particular.

Um dia, Manuel, tomou uma decisão. Voltaria pra cidade que lhe viu nascer. Aquela, portanto seria a sua última mudança.

Escolheu o mês de Setembro para pegar a estrada de volta.

Já estava no outono da vida. Foi curtindo a beleza do caminho de volta.

Chegou a querer "uma casa no Campo, onde pudesse compor alguns rocks rurais" , mas se contentou em voltar a morar no bairro tranquilo e humilde onde nasceu.

Manuel, no entanto cometeu um erro. Conservou intactas as lembranças de sua infância e juventude. Nada, porém era como antes. Essa Praça, quanta diferença! cadê a venda da esquina? a Escola onde estudou, tudo mudado, até o portão de entrada era em outro lugar. No entando, era Setembro. Havia um alarido de esperança no ar.

De volta pra casa, passeava os olhos na estante. Olhava exemplar por exemplar. De repente seus olhos pararam naquele livro: " Rua dos Cataventos & Outros Poemas "

Não se lembrava de ter esse exemplar. Deslizou a mão na capa do livro. O papel apergaminhado 24 k, havia adquirido um tom quase de papel jornal. O tempo e sua arte de não deixar nada em seu lugar. Não sei qual é mais traquina. Se o tempo, se o vento. Nunca vi gostar tanto de brincar com as coisas e as cores.

Quanto abriu o livro, lá estava uma dedicatória que sempre mexeu com ele. Na verdade um poema que constava no próprio livro do genial autor, Mário Quintana: " No fim tu hás ver que as coisas mais leves são as únicas que o vento não conseguiu levar: Um estribilho antigo

Um carinho no momento preciso

O folhear de um livro de poemas

O cheiro que tinha o próprio vento"

"Coisas leves são as únicas que o vento não conseguiu levar"... Fernando...onde andaria este amigo? Essa amizade por exemplo, seria uma das "coisa leve" da qual falava o poeta?

Ao folhear o livro de Quintana, outro espanto; diria, outra quintaneada: Uma pétala seca caiu aos seus pés. Ele ficou inerte. Prendeu a respiração. Nada mais delicado do que aquela cena. A pétala que seria de uma rosa vermelha, por anos esquecida dentro do livro, perdeu todo viço; adquiriu um tom Kraft; o tempo apagou tudo, mas ele se lembrava: Havia uma mensagem naquela pétala, que fora escrita com o espinho da própria roseira. Tinha tudo na memória. Quanto tempo sem que a mente acessasse aquilo. Estava no cantinho de seu coração e ele não sabia.

Naquela noite e um bom pedaço da madrugada, foi dedilhando as cordas daquela lembrança.

Pensou no amigo da dedicatória. Onde andaria? Caso lhe encontrasse, ambos se reconheceriam?

Por onde passou só deixou amizade, mas Fernando, foi o seu primeiro amigo. Eram vizinhos. Compartilhavam tudo. Desde um velotrós, a um Escort que compraram juntos. Futebol, vídeo games. Às vezes o dia era pouco para tanta coisa em comum, pediam aos pais para dormir na casa um do outro. Não era algo no sentido erótico, se é que me entende, era fraternal.

No grupo escolar permaneceram na mesma classe; veio ginásio se separam. Estudavam em blocos diferentes. Mesmo assim se encontravam frequentemente. Foi nessa época, no dia de seu aniversário, que ganhou dele o referido livro de Quintana. Ambos conquistavam sempre novos amigos que nada tinham em comum. Foram ficando distantes. Distantes e desatualizados um do outro...

A pétala seca que caiu do livro...

Lavínia.Conheceu, Lavínia, na primeira série do grupo escolar. Eram também vizinhos. Todos os dias ele a esperava na porta da escola. Sempre caminhando juntos, da escola pra casa e da casa para a escola. Dividiam lanches, lápis, canetas e os mesmo gosto para músicas e filmes. Horas a fio conversando no alpendre da casa, nem notavam o tempo passar.

Um dia voltando do ginásio, era aniversário de Manuel, ela lamentou por não ter dinheiro para dar o presente que ele merecia. Foi quando, pediu para ele pegar a seu material escolar e esperar. Teve um ideia original. Entrou sorrateiramente em um jardim, ( se alguém viu, fingiu não ver aquele roubo, aliás o único roubo que deveria ser permitido no Código Civil Brasileiro ) apanhou uma rosa vermelha escarlate e lhe entregou de presente. Depois arrancou um pétala, pegou um espinho da própria rosa e escreveu. "Lavínia e Manuel". Enquanto escrevia disse que gostava tanto de seu nome que se tivesse um filho colocaria nele o seu nome. Com o que, ele não concordava. Mas como tudo era mágico e acaba em sonoras risadas...a pétala foi colocada dentro do livro de Quintana, que também acabava de ganhar.

Passou o tempo..Foi um setembro, veio outro." Tudo muda o tempo todo". Ela foi fazendo uma escolha, ele foi fazendo outra. Ela mudou de cidade. Ele mudou também. O amor também mudou de nome. " Só "as coisas mais leves o vento não consegue levar"

Um antigo amigo e um antigo amor... E se a vida os colocasse frente a frente. Qual a reação?

Como numa cidade pequena todo mundo acaba se esbarrando.

Lateralmente. Estava entrando em um restaurante, quando um moço, aparentemente, apressado, aparentemente atrasado lhe esbarra. Quando vira para se desculpar dá de cara com o velho amigo. A cena foi cinematográfica. Com direito a lágrimas. Como estava atrasado. Apanhou um guardanapo, uma caneta e escreveu:" No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas que o vento não consegue levar. Um estribilho antigo..." Prometeram se encontrar. E talvez não se separasse mais vida afora.

Perguntou se já havia se encontrado com Lavínia. Disse que ela havia se casado, tinha um filho...

Repito, o mal de cidade pequena. Não demorou muito eles estavam frente a frente. Mas foi tudo muito discreto, acomedido, bem chué mesmo. Mínimo de sorriso. Inclusive foi apresentado ao marido dela, renomado advogado, como um primo distante. O assunto sumiu. Um grilo cantava cri, cri, cri, num jardim anexo como trilha sonora. Enquanto o esposo se afastava atendendo rapidamente o celular, ela não disse nada, arrancou discretamente a pétala de uma rosa ao alcance de sua mão e, ainda mais discretamente, jogou-a, na calçada por ali.( Que ninguém vem aqui citar Capitu com seus "olhos de cigana oblíqua e dissimulada". Lavínia jamais trairia seu bom marido, vou seus linguarudos.)

Já haviam se despedido quando Lavínia chamou o filho para entrar no carro onde o marido já dera partida: Leunam! Vamos!

Na dúvida apanhou aquela pétala, jogada na calcada, curioso que, embora estivesse ventando, o vento não conseguiu leva-la dali.

Em casa, colocou a nova pétala de rosa dentro do livro de Quintana, nem sabia por que fazia aquilo. Sentiu- se meio idiota. Lembrou do estranho nome do filho dela. Leunam. Só que não era mais estranho. Ou era... Lembrou que o pai dela também se chamava Manuel..

Há coisas leves que sofrem mudança, mas não serão levadas. E quando Setembro chega, nos lembramos delas: Livros, flores, amizades, quem sabe o amor, mas sobretudo um poema de Quintana...