Meu nascimento, “ a coisa mais importante que me ocorreu”,no dito de Mário Quintana, deu-se na Localidade de Barra do Salitre, na Fazenda do Sr. Natal Cândido e Dona Alaíde Lemos. Pense em duas pessoas maravilhosas. Pronto? Garanto-lhe que eles superavam. Meu avô, Benedito Souza e Vó-Mãe-Badia, não sei se em condições de um longo arrendamento, sei que criaram ali dez filhos. Do casamento de um deles, Lourival,com Adelina, nasceu este que até hoje ainda não soube por que me deram o nome do célebre poeta cego: Mílton. Vai ver, sabiam que também tatearia por aí em busca do meu paraíso. Até os meus sete, oito anos, Barra do Salitre, era meu vasto universo.
Cresci, ali, fascinado com o bucólico espetáculo da natureza. Agarrei-me com ternura e coragem ao ofício de acordar cedo e viver. Vivenciava o conceito “Carpe Deam” de Horácio, sem conhecê-lo.O dia ainda esfregava os olhos, eu já me encontrava de pé. Embora usasse, calça curta, começava o dia me sentindo um homem feito, ajuntando os bezerros para o meu avô. Enquanto seguia os atalhos, encantava-me com as gotas cristalinas de orvalho na invernada do açude. O pavor de cobra, não me impedia de encher os bolsos de gabiroba ou araçá. Diria que era uma deliciosa tarefa.
Depois do almoço, o mormaço exigia sombra e água fresca, mas alguém tinha que trabalhar, naquele sertão. ” Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.Minha mãe ficava sentada cosendo.” (Drummond )Eu debaixo das generosas mangueiras, ia de um continente a outro sem apear do meu cavalo de pau. Era um nada povoado de maquinações doidinhas.”Quando eu crescer quero ser fazedor de música para tocar no rádio”. Vê-se pode! E questionava. “Será se menino passar debaixo do arco-iris vira menina, mesmo?” Nem minha vó falando, não acredito que borboletas vem do mandruvá” Pra que esta cabeça seca de vaca na entrada do curral?” Falando em minha vó,(que muito disto vinha dela) o dia em que ela torrava café, “não podia molhar” eu tinha que ficar por conta. Sexta-feira santa, então, hô dia! Não podia fazer nada, até o meio dia! Não se varria a casa, não se olhava no espelho. E tome histórias alusivas: “...João Jiló saiu para caçar na SEXTA FEIRA DA PAIXÃO, matou um galo e nada neste mundo fazia esse galo morrer, mesmo colocado na panela fervente, ele tirava o pescoço pra fora e dizia:''DÓI...DÓI...JOÃO JILÓ...''
No geral,os dias eram terrivelmente curtos para tantas brincadeiras com os primos. Logo, “As cigarras derretiam a tarde com seus cantos”.(Manuel de Barros) De repente, ouvia -se o passaredo com aquele chilrear dolente se despedindo da tarde. Hora de encerrar as nossas brincadeiras.
Era uma aporrinhação a chegada da noite. O escuridéu me trazia um medo lascado.Tanto que só desejava ficar pertinho do papai. Seu calor me transmitia segurança. Ora, e cadê a minha valentia diurna. Pudera! Não sei de onde saía lá fora tanto chiado, coachar, grunhidos, uivos, zumbidos, miados, roncos, gemidos e pios estranhos. Os entes da noite entravam em cena e meu coração amuava no peito. As traquinagens diárias desfilavam em minha mente agora culpada. Chegava a jurar solenemente para mim mesmo, que ia ser um menino mais aplicado quando o sol voltasse.
No cortejo de culpa, aquele pão de queijo que peguei escondido da vovó. O cascudo na irmã. A pedrada certeira na maritaca. O “segura peão” nos bezerrinhos do vovô. “Por que deixei aquela porteira aberta e não falei e os porcos saíram pelo quintal?” “Por que nadamos com os trajes do David do Michelângelo?” O superego Freudiano, me chegava o chinelo a noite...Há, mas, qual nada! Logo alvorecia , esquecia tudindo e recomeçava novas seções de estripulias.
Quando falo de minha infância, portanto, não sinto inveja nenhuma de Mowgli, Pequeno Príncipe, Tom Sawyer, Gulliver, Menino Maluquinho, nem o “Menino no Espelho” de Fernando Sabino. Se bem que esse me excedeu nas invencionices e travessuragens. Imagina! Ele conversava com a galinha“Fernanda” e livrara-a tantas vezes da morte na panela. Sem falar na “Sociedade Secreta Olho de Gato” que desvendava cada tramóia que as pessoas comuns jamais sonhariam. E, claro, Peter Pan. As vezes, ainda acho que sou, um pouco, por que, embora não tenha conhecido, sereias, nem enfrentei crocodilos famintos, índios e o tal Capitão Gancho, mas... fiz das minhas.Também me recuso a deixar o menino que vive em mim crescer e se emburrecer no mundo de gente grande, nanica por dentro..
Outra parte de minha infância, deu-se na cidade, precisamente no fundão da Matriz. Meu maior sonho era aprender a ler e escrever. Minha alfabetização, que começou magicamente com a Profª Maria José, lá no cantinho do mapa, continuou no Grupo Cel.João Cândido de Aguiar. Escola, na época, sob a direção de Dona Dunalva Queiroz. Foi ali nos livros didáticos, que conheci Cecília Meireles,Vinicius de Morais, Ruty Rocha, Carlos Drummond e Monteiro Lobato.Passava diante da biblioteca da escola pra lá pra cá, até então, não sabia que podia levar livros, como os da série “Vaga-lume”, para ler em casa. E não é que podia?
Tinha brigas após a aulas e as doces travessuras na hora do recreio. Quantas vezes com a cumplicidade de dois ou três companheirinhos, pulávamos para o quintal vizinho ao grupo, para dar uma afanadinha de leve numas jabuticabas, mexericas, cajus e cajamangas. Coisa feia, sim e jamais façam isto, viu, crianças!
Claro, não é somente das capetagemzinhas que me lembro. Como lastimei a partida prematura da profª Maria Isabel Queiroz. Não me recordo mais do seu semblante, mas sei que cativava pela meiguice. Tive como educadora, ainda, Maria do Carmo, Aparecida Santos Bulckool e Cristiabel Resende Alves. Todas no meu feixe de boas lembranças. Como esquecer também a afetuosidade de Irmã Conceição, e seu jeito lúdico nos ensinar: “,Lá em cima está o tiro-liro-liro,cá embaixo está o tiro-liro-ló...” “Belarmino tem uma flauta, a flauta é de Belarmino, sua mãe sempre dizia toca a flauta, Belarmino tem um flauta...” “O Sugismundo passou por aqui”, “Fica sempre um pouco de perfume nas mãos que oferecem rosas... “
Segue a vida, logo, segue a colcha retalho de perdas e ganhos. O perfume , embora, difuso, ficou; Irmã Conceição, assim como os meus emblemáticos, bucólicos e risonhos anos, vão se distanciando como o apito do trem que agora,enquanto escrevo, corta a cidade e seu sonido vai se perdendo ao longe...
Lya Luft , disse que “A infância é o chão sobre o qual caminharemos o resto de nossos dias” Este chão fértil de reminiscência vai ficando cada vez ao longe. Daqui pra frente vou precisar de mais lucidez e vigor, para me reconduzir nestes tour imaginário lá onde fui menino...
DIGA LÁ TROVADOR/POETA:
"Era o caminho da roça
E a pureza de Maria
A folha verde no mato
A chuva quando caia..."