Isto ou aquilo
*Jussara de Queiroz
Amanhã mal acabou de nascer, e quase não se pode ver os patos, encobertos por uma fina camada de névoa, ou pelo adensamento de árvores que circundam o lago, remanescentes da Mata Atlântica. Mas, sobretudo, por causa do céu cinzento. O sol vai demorar a dar as caras.
O frio chicota a pele. Fecho o agasalho. Respiro fundo, tão fundo que me dói lá dentro. Olho para a frente. Caminhar é preciso, para distender músculos e nervos. Dou os primeiros passos. Hoje não vai ser fácil. Indiferentes a essa coisa incômoda que carrego por dentro, os patos se lançam na água, silenciosos e leves. Ah, me empresta essa leveza, para eu enfrentar a vida.
Exibindo-se para mim, as aves singram as águas, sem se importarem com a ondulação, formada pelo vento. Sopra, vento, sopra, me leva pra longe de mim! E continuam nadando, pra cá, pra lá, insensíveis às horas que correm nos ponteiros do relógio do mundo. Por Deus, não dá para me emprestarem essa indiferença?
Deve ser por causa do frio desta manhã ou do manto cinzento do céu sobre este lago, o certo é que estou sozinha. Ninguém ainda se atreveu a enfrentar o dia. Tanto melhor. Não preciso de companhia; há muitas vozes dentro de mim. Se pudesse escrever agora, isso mesmo é o que eu faria. Mas a escrita quer se afastar de mim. Vem cá, minha linda e doce língua portuguesa, me salva da roda da vida. Ela vai me esmagar.
Que faz debaixo do banco este cachorro que me espia com desconfiança? Viro o rosto para o lado, mas gosto de bichos. Eles também me salvam, muitas vezes. Por estes dias, um gato apareceu em minha casa. Um siamês, lindo de morrer. Senhor de si, entrou na sala, saracoteando a cauda. E, feito eu fosse a dona dele, pulou no meu colo, aninhando-se para dormir. Sem dar bola para meu espanto, para meus dedos ásperos e braços desengonçados para acolher. Um pouco trêmula, entrefechei os olhos e não achei um meio de recusar aquela coisa viva e pulsante, que se oferecia tão gratuitamente.
Findo o sonho e o sono, o gato se foi, escalando o sofá e a janela com suas patas de veludo. Não me agradeceu o colo. Vi-o entrar na mata, como se não conhecesse o perigo. Pensei em chamá-lo de volta, oferecer-lhe qualquer coisa para comer. Desisti, no meio do pensamento. Ela não queria mais nada de mim. Olhei ao redor, procurando onde me apoiar, e neste exato momento soube que a minha casa estava, de novo, aberta a outros bichos.
Nestas árvores, as aranhas tecem rendas perfeitas, estendidas ao modo das bordadeiras nordestinas. Paro para admirar a geometria dos trabalhos, produzidos a partir de um molde ancestralmente programado e executado com perfeição. Sinto inveja. Meus fios estão emaranhados. Não há trabalho que possa ser bem feito agora. Basta reparar nestas linhas tortas, que vão se escrevendo à minha revelia.
Com os olhos úmidos, volto ao lago. Peixes nadam numa onda de felicidade. Patos planam sobre as águas. Aranhas prosseguem seu trabalho. Pássaros voam alto, enfeitando o infinito. Insetos se esgueiram por toda a parte. Árvores sussurram segredos umas às outras. Cachorros ressonam debaixo de bancos. Tudo segue a ordem do dia, a linha da vida. Mas hoje estou fora dos trilhos.
Ô leitor, tenha paciência comigo! Não sei o que tenho, se isto ou aquilo.
* Entre mil afazeres, JUSSARA QUEIROZ, se lembra de nos enviar mais uma crônica de sua lavra. Ela é patrocinense, há muito radicada em Beagá, acadêmica da Academia Patrocinense de Letras, assinou no Jornal de Patrocínio, por dezesseis anos a apreciadíssima, coluna, "Catavento". É jornalista, publicitária e escritora premiada. O livro de sua autoria "Voo Rasante" foi agraciado com Prêmio Cultural BDMG de Literatura. Artigos seus publicado no Jornal Estado de Minas, foram lidos e elogiados em todos os quadrantes de Minas. Jussara, é proprietária da conceituada Agência Pauta, em Belo Horizonte. Atualmente, é uma das autoras do renomado projeto “Livro de Graça na Praça”.