23 de Fevereiro de 2014 às 19:47

Minhas Primeiras Páginas

“Eu’ era um menino valente e caprino, um pequeno infante, sadio e grimpante”Tal qual a canção de Vinicius e Toquinho.

Imagem ilustrativa

Cresci no seio da natureza. Os anos de minha primeira infância se resumiram em contemplar a exuberância da vida na flora, na fauna e as traquinagens no pomar/floresta onde residiam meus avós. “Eu’ era um menino valente e caprino, um pequeno infante, sadio e grimpante”Tal qual a canção de Vinicius e Toquinho.

No bucólico lugarejo no cantinho do mapa, ao sul de nosso município, chamado Barra do Salitre.(imagem ilustrativa)  Ali, tudo ganhava vida bem antes do sol nascer. Vô Benedito Souza, um senhor de  olhos azuis e fala mansa. Não perdia  aquela  fidalguia de lord, mesmo quando era obrigado a se embrenhar na invernada orvalhada  para convencer o rebanho pasmacento e empacado que ia alta a hora da  ordenha “Ê,ê.ê, Vaca Estrela; Ô.ô,ô Boi Fubá”. Só que, era “Mimosa e Mansinha”algumas de suas xodozinhas e vô Benedito, passava bem, aboiando suas vaquinhas sem as caretadas do Raimundo Fagner.

Vó-Mãe- Badia, uma senhora, que nunca fora vista sem seu discreto brinquinho de ouro e seu inseparável lenço de seda, cuidava do café reforçado, enquanto voluntariosos peões, aprontavam as ferramentas da lida.”Barriga cheia, fogo no paiol” Daí a pouco nenhum barbado nas  adjacências do terreiro. Chispavam todos ao eito do dia. E eu passava os dias ali, quieto, no meio das coisas miúdas. E me encantei”(Manoel de Barros)

Quantas disposição naqueles rostos tostados de sol.”O sertanejo é, antes de tudo um forte” Mas, bota forte nisto, Euclides da Cunha! Sulcavam a terra com determinação. Plantavam o arroz, o feijão e o milho e montavam guarda contra as pragas. Deus honrava a todos com um paiol abarrotado e uma dispensa farta.

A Mamãe de vocês foi passear no céu” Eram o que diziam para quatro childrenzinhos. Marta, na época, 06 anos; euzinho, com 04; Maria do Rosário,02 e  Marta Eliza com 02 meses. Aquele clichê de que Deus não desampara ninguém, é verdadeiro. Olhe aqui para nós, hoje:Vivemos a delícia de colos emprestados e não foi sacrifício nenhum chamar de mãe a quem se desdobrou em nos conduzir pela vida com carinho.A caçulinha Marta Eliza, por exemplo, chama minha/nossa Tia Maria de Lourdes(Fiota) de mamãe e  seus filhos (nossos primos,) de irmãos.  Maninha, não poderia ter tido outra mãe melhor.

“Nosssa!, Lia, olha só como esse Miltin é fooorte!” Putsgrilo! Com este elogio e a cumplicidade de  minha tia caçula, Vó-Mãe-Badia, jogava verde para colher maduro, sabia as manhas, para me fazer carregar esbaforido e rápido, achas de lenhas para suprir sua dispensa. Parece que minha analfabeta vozinha, conhecia as psicalizadas de Freud: “Podemos nos defender de um ataque, mas somos indefesos a um elogio."

Cresci fascinado pela eufonia da natureza. Sentia  música e poesia onde postava meu olhar pueril. Quedava-me horas a fio, brincando com os insignificantes insetos; ouvindo o farfalhar do vento roçando as copas das generosas mangueiras. Ao fundo do quintal os esbeltos bambus vergavam com elegância como que ao som de um allegro agitato celestial. Somente aquele que também tem intimidade com natureza entende estes mil tons geniais”.

Devido ao fato de papai ter sido extremamente travesso, quando pequeno, minha vò e minhas tias, tentaram logo  me inibir. Ouvi delas muitas histórias de “assombrações” Gente que  me levaria num saco de linho se continuasse a desobedecê-las. Claro, levava tudo a sério e dava um jeito de moderar minhas traquinagens.

Certa vez um andarilho mudo conhecido pelo nome de  “Mudinho da Carola”, personagem que de tempos em tempos aportava por lá.(Era um dos tais que, segundo elas, me levaria no saco). Brincava distraidamente com uma enxada junto ao portão, quando um pisante encardido apareceu diante dos meus olhos. Não tive dúvida. Era um dos  caras que  ia me levar no saco. Minha adrenalina bateu  recorde. Ergui a enxada e puft! desferi-lhe um golpe certeiro no peito do pé e disparei quintal a baixo.Só parei quando vi que ninguém me seguia.Torci feito um louco depois para que ninguém entendesse as mímicas e os resmungos do mudinho. È, mas não teve escapula, não. A noite o episódio acabou chegando aos ouvidos de meu pai.”Cadê ele, vem cá vamos acertar as contas” Ficou só repreensão verbal. A sorte é que bati com as costas da enxada, mas até hoje isto lateja em consciência .

Um belo dia aprendi a rabiscar meu nome e disparei autografando paredes, portas, janelas, tronco de árvores, parecia “O menino que aprendeu a ver”de Ruth Rocha. Onde o menino João, também  vivia espantado. Ele via tudo, mas só entendia metade. E o que João não entendia eram as palavras. Então, chegou a hora de entrar na escola. À medida que aprendia, o espanto de João, em vez de diminuir, crescia! Ele viu primeiro a letra A das placas, faixas e revistas. Depois, a letra D. Quando João percebeu, ele já sabia ler!. Bem assim começou meu letramento lá mesmo na Barra do Salitre.(Quarenta e tantos anos depois, emocionado, encontro no centro da cidade, minha primeira professora Dnª Maria José e ela lembrando de coisas que já havia me esquecido)

Vô Benedito, era homem de enxada e livros. A tarde colocava seus óculos( ficava ainda mais parecido com a cara daquele  ex-dep. Homero Santos) buscava um cantinho confortável e alimentava o espírito com alguma leitura. Possuía vário clássicos da literatura Kardecista, filosofia, aritmética (chii! será se é de comer, ou passar no cabelo?) fábulas de Esopo e estórias com ph, que logo devorei tudo. Tinha um negócio de “Santo Graal”, não entendia bolhufas de nadinha daquilo, mas li diversas vezes de capa a capa. E por fim, vi que era de livros que eu mais gostava na vida  e  tomei posse da quinquilharia literária de meu avô.

Todavia, como diz o jagunço Riobaldo Tatarana, “Viver é perigoso”,Também acho, perigosíssimo, pois temos que fazer constantes escolhas. A estrada convida os nossos passos;  o horizonte seduz o nosso olhar. Não podemos estacionar a vida em nenhum lugar. O ser humano é um ser de estradas. Sem partida ou chegada  necrosa-se a existência. Nesta perspectiva, num dia qualquer na década de 70, meu avô,deve ter relutado no seu íntimo, mas, fez uma difícil escolha. Logo, um caminhão cruzava para sempre aquela porteira levando a sua mudança  da Barra do Salitre para o Fundão da Matriz.Tive que passar a viver com meus avós para estudar, enquanto papai - e parte de meus irmãos- seguiu com sua alma zíngara. Mudando e mudando pela região.

Vô Benedito, logo “foi passear no céu., Limpava um quintal/chácara das tantas que havia no Fundão da Matriz, quando a carruagem da morte passou. Se a “madame do gorro preto” quis pegar  meu avô, foi  alí, no eito, no trabalho. Lá se vão mais de  quarenta  anos e  ainda me dói a ausência daquele velhinho de caráter sólido como uma rocha.Nossa convivência foi marcante.Talvez, vem dele minha terna reverência ás pessoas idosas...

E assim, no Fundão da Matriz, formava minha personalidade e achei que deveria escolher o caminho de ser o ‘carinha’. Trazia nas veias a coragem de meu pai domador burro chucro. Venci minhas primeira brigas, na grupo Cel. João Cândido. Descobri meu lado violento, impunha nas rodas. Até aí, claro, coisas de adolescentes. Mas decidi ir mais longe. Matriculei-me na escola Ken bukan de Karatê. Treinava exaustivamente com o amigo Dinho da Dona Carmem. Estava determinado ninguém me abateria facilmente numa briga. O  valente e bravateiro Plutão,(assassinado alguns anos mais tarde) era meu ídolo local.

Naquela altura estava me cedendo a um espírito de aventura e ódio que não saberia onde daria. Tinha um rompante de coragem que a mim mesmo impressionava. Com uma cagibrina na idéia então... Certa vez, no restaurante Jamaica, quando era gerente, ali, o cineasta, poeta e produtor musical, Alberto Araújo, casa cheia, subi repentinamente em cima de uma mesa, bati palmas exigindo atenção de todos e falei tanta asneira, que até hoje me envergonho. De outra feita, gangorrei nas cortinas da casa da “Silvia”ali na Casimiro Santos,  tiveram que chamar a Polícia. Fugi para um baile no Colégio Profº Olímpio dos Santos. Tal qual um ‘porra loca’, chutei o bumbum de um rapaz, simplesmente por ter  achado sua dança horrorosa. Arrumei gratuitamente  uma encrenca das arábias.

Todavia, como preconiza Jean - Paul Sartre: “Cada homem inventa o seu caminho” assentei para sempre em meu coração, colocar minha cacholinha nos eixos. Que outro seguisse o caminho underground da violência, eu jamais. Preferia não viver a  dar este desgosto para minha família. Para sempre seria íntegro, autêntico e responsável. Voltei a me apaixonar loucamente pelos livros. Passei a usar uma bolsa de couro a tira colo. Houve quem insinuasse  que eu estava me tornando uma biba. Era apenas livros que carregava pra lá e pra cá, naquela bolsa, alguns dos quais, alocados na Biblioteca Pública da cidade. Digo que  foi nas páginas dos livros (incluindo sobretudo, o evangelho de Cristo) que sosseguei meus vulcões internos, saciei minha sofreguidão por infinito e encontrei tudo de que precisava para tocar a existência resoluto,  resolvido e de bem com a existência.  

  Só peço uma coisa: Se Manuel Bandeira tem a sua Pasárgada”; Gabriel Garcia Marques, tem a sua Macondo”; o Salmista Davi nos fala de “Sião”;Fernando Pessoa nos fala de sua Aldeia”;Eustáquio Amaral nos fala da nossa,“Santa Terrinha”. Porque não posso falar de minha Barra do Salitre” de vez em quando? Mesmo que grande parte dela se encontra para sempre  submersa nas águas da  represa de Nova Ponte, posso mergulhar nas lembranças...

*...Após 40 anos, aceitei o convite do amigo Reinaldo Cherulli e regressei  a  este bucólico   lugarejo de minha infância. Para quem não sabe, Barra do Salitre, (Nada a ver com Salitre de Minas ou Serra do Salitre) situa-se cerca de  50 KMs   ao sul do município,  bem no cantinho do mapa, precisamente  onde  os municípios de Perdizes, Serra do Salitre e Patrocínio se limitam. Exatamente onde as águas do Rio Quebranzol e Rio Salitre se encontravam. (Antes da construção da  Represa de Nova Ponte). Um tiro de pedra. Esta  fazenda, na qual, a família de meu Vô Benedito Souza, residiu até a década de 70,  pertencia ao saudosíssimo  casal Natal Cândido e Dona Alaíde Lemos. Hoje, depois de  diversos donos, pertence ao conceituado advogado Otacílio Ferraz. Se “tudo muda o tempo todo”, como diz a canção de Lulu Santos, sabia que não restava mais pedra sobre pedra naquele lugarejo, respirei fundo e fui confirmar.  Fomos gentilmente recebidos  por um  caseiro de  nome sr Paulo, mas me senti  meio  deslocado, por alí. Foi-se o  casarão original, o jardim, os currais, o pomar e a maioria dos parentes de então, também, não existem. Contudo, não fiquei com raiva de Deus, nem de ninguém. Aquele lugar que não existe para o olhar físico das pessoas, pra mim está intacto. Cristalizei cada detalhe de minha infância  e entesourei em lugar que imagino seguro. Vejo os anos passando, o cotidiano exigindo tanto, as lembranças ficando vagas, imprecisas, as fotos amarelecendo, mas prometi ficar duro na queda neste intento. Que nada neste mundo venha me distanciar  desta minha bucólica e humilde origem na Barra do Salitre. A  propósito, tem tanta gente com vergonha de dizer que nasceu  na roça, junto a natureza...Tenho o maior orgulho. È de lá que vem muito de meu lastro, toda leveza, minha bússola moral, minha essência e as primeiras páginas do livro de minha existência.

(Acorda ligeira e vem olhar que lindo, sobre o morro sol se debruçar...)